quarta-feira, 20 de março de 2019

Drag Queens, as rainhas do crossdressing

Hoje em dia quando se fala em Drag Queen logo vem à nossa mente uma imagem fantasiosa de glamour e brilho. Tal percepção é provável que tenha relação direta com o reality show RuPaul's Drag Race que foi ao ar em 2009 e transformou a cultura underground em algo pop, mas essa arte é muito mais antiga e teve seus altos e baixos ao longo dos últimos séculos.
Cheguei a escrever um pouquinho sobre as Drags no post Crossdressing / Crossdresser / CDzinha pois essa arte de transformação nada mais é do que uma vertente do crossdressing que está intimamente ligada às artes performáticas. Nesse post vou me aprofundar na história dessas rainhas.

O início de tudo pode-se dizer que foi o teatro grego. O próprio teatro nasceu na Grécia Antiga (século VI a.C.) e, na época, somente homens podiam interpretar, então os personagens femininos eram vividos por atores homens com máscaras femininas, vale lembrar que as roupas ainda não distinguiam os gêneros direito. A situação se manteve assim por mais de 2 milênios, tanto que as peças de Shakespeare (século XVII d.C.) ainda eram interpretadas exclusivamente por homens.
Pintura: Hamlet recebendo os atores (1875) por Władysław Czachórski
Essa história começou a mudar na Europa durante o século XVII quando surgiram as Óperas. A necessidade de incluir timbres femininos nos palcos para participar deste tipo de espetáculo abriu as portas do teatro para as mulheres e, aos poucos, a carreira de homens especializados em interpretar personagens femininos entrou em decadência.

A medida que as mulheres estavam mais atuantes no teatro, os homens passaram a se vestir de mulher por motivos cômicos e para sátiras, abusando de maquiagens e trajando vestimentas que parodiavam o estilo de vida da alta sociedade. Foi neste momento que os personagens ganharam características de caricato feminino, algo marcante na cultura drag que está presente até o momento.
Pintura: Folião no carnaval (1616-17) por Frans Hals
Dois homens cercam uma garota ricamente vestida. Provavelmente se tratava de um ator
pois as mulheres não podiam se apresentar nessa ocasião.
Sem muita demanda nos teatros os atores que praticavam crossdressing tiveram que se reinventar e caíram na onda dos Vaudevilles. Esse foi um gênero de entretenimento de variedades que nasceu na França e que se popularizou nos Estados Unidos e Canadá entre os anos 1880 e 1930. Seu formato se assemelha aos circos atuais com apresentações itinerantes de músicos, dançarinos, comediantes, animais treinados, mágicos, transformistas de ambos os sexos, acrobatas, atletas, entre outros.

Os female impersonators (transformistas) rapidamente se tornaram referência no movimento e surgiu então a primeira drag queen famosa: Julian Eltinge. Sua popularidade ultrapassou o vaudeville e seu talento artístico lhe rendeu turnês pela Europa e pela América. No teatro surpreendeu o público com o papel principal de “A Viúva Fascinante” (1911). Seu sucesso foi tanto que ele se tornou um dos artistas mais bem pagos de sua época!
Julian Eltinge (1881-1941)
Acrescento outro detalhe interessante. O formato com shows mais curtos e, muitas vezes, individuais desse modelo de entretenimento também deixou o seu legado. Se você reparar, as apresentações atuais das drags mantém essa linha, seja com dança, canto, lip sync, bate cabelo ou comédia, a configuração veio dos artistas dos vaudevilles.

Apesar da breve ascensão desses artistas, as grandes guerras (1914-1945) chegaram para acabar com a festa. Essa foi uma época de diversas mudanças, no post sobre a história da distinção entre gêneros na moda eu citei a mudança na responsabilidade social feminina e nos vestuários femininos. No caso das drags o baque foi grande pois o lazer ficou em segundo plano e uma onda conservadora tomou conta de diversos países.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a lei seca junto com a criminalização da homossexualidade obrigou muitos artistas a se esconderem em clubes clandestinos para terem a oportunidade de se expressarem e se divertirem. Mesmo atuando em ambientes escusos, as drags vivenciaram uma onda de popularidade underground que tomou conta de locais como Los Angeles, Nova York e São Francisco, esse período ficou conhecido como Pansy Craze (1930-1933). Outra coisa, esses clubes noturnos ilícitos dedicados à homossexuais também moldaram às casas noturnas dos dias de hoje, na minha cidade, por exemplo, muitas baladas LGBT são aclamadas por gente de todos os públicos!
Bailarinos, 1929. Nova York
Chegando na década de 1950 a polícia começou a reprimir estabelecimentos que simpatizavam com o movimento LGBTI e impor leis anti-travestismo; em Nova York, por exemplo, os homens eram legalmente obrigados a usar pelo menos três peças de roupas masculinas para não serem presos por travestismo. Em meio à intensificação da hostilidade anti-gay, em 1965, foi fundado o Imperial Court System como a primeira organização de drag queens, e esse tipo de construção comunitária acabou se tornando um recurso valioso dentro da comunidade LGBT passando a ser conhecido publicamente.
Kitt Russell (1951)
Nos anos 70 as drags viraram símbolo da luta pelos direitos LGBT, mas com o avanço da AIDS a comunidade foi mais uma vez renegada e as elas tiveram que se contentar com os clubes noturnos. Por outro lado o filme musical Rocky Horror Picture Show (1975) com o ator Tim Curry e o visual sem gênero do David Bowie abalaram os pilares da cultura popular. Talvez isso tenha colaborado com a liberdade adquirida na década seguinte.
Tim Curry e David Bowie
Somente nos anos 80 que a cultura drag voltou a ser um fenômeno pop. As drag queens finalmente foram reconhecidas pelo público com muitas delas aparecendo em programas de TV, filmes e rádio. Para essa década tenho vários exemplos positivos como a artista Divine que estrelou em Hairspray (1988), a Lady Bunny que era conhecida por sua comédia, atuação e mixagens, ou os músicos Boy George (Culture Club) e Pete Burns (Dead or Alive) que tomaram a frente das suas bandas enquanto mantinham um visual completamente andrógino. Ah sim, foi justo nessa época que nasceu a carreira da deusa RuPaul.
Divine, Lady Bunny e Boy George
Bom, na década de 1990 e em diante veio o reinado dela: RuPaul Andre Charles. Subindo ao estrelato com seu hit Supermodel (1993), ela mudou a indústria como a conhecíamos. Os filmes Priscilla, A Rainha do Deserto (1994) e Para Wong Foo, Obrigado Por Tudo! Julie Newmar (1995) também contribuíram com a causa, principalmente por transformar atores como Terence Stamp, Hugo Weaving, Patrick Swayze, Wesley Snipes e John Leguizamo em divas.
Priscilla, A Rainha do Deserto (1994) e Para Wong Foo, Obrigado Por Tudo! Julie Newmar (1995)
Para fechar com chave de ouro, em 2009 surge a série RuPaul's Drag Race que permitiu que mais e mais artistas se promovessem e ganhassem seu lugar no hall da fama americano. O programa busca encontrar a próxima Drag superstar no mesmo estilo do concurso America’s Next Top Model. Até o agora foram onze temporadas, mais quatro edições do All Stars (com candidatas remanescentes), e o que está sendo chamado de “efeito RuPaul” na comunidade LGBTQ: ser drag está na moda!

Como consequência mais casas noturnas estão investindo em shows de drag queens, os cachês aumentaram para artistas de destaque e a cena noturna floresce com uma variedade de jovens que se divertem com o transformismo. Até podemos ver pessoas que não são do meio artístico nem da comunidade LGBT se montando e curtindo a vida social com muito glitter, inclusive tem homem hétero e mulheres cis na onda aproveitando a liberdade de expressão proporcionada pela cultura drag.

Eu acho incrível o quanto o transformismo intriga e, ao mesmo tempo, entretém. O impacto da arte drag em questões como a quebra dos padrões de gênero e a liberdade de expressão são consideráveis e, apesar de muitos verem o caricato como uma ofensa às mulheres, eu acredito que a visibilidade do movimento compensa porque abriu caminho inclusive para comunidade trans!♥
"Drag é, na verdade, tirar sarro da identidade. Nós somos metamorfos. Nós somos algo como: ok, hoje eu sou isso, agora eu sou um cowboy, agora sou isso". RuPaul Andre Charles
1 Comentário(s)
Comentário(s)

Um comentário:

Marana de la Rosa disse...

Amei o post, aproveito para complementar:

Você citou o Julian Eltinge, o ápice do female impersonator nos anos 1910, e ele possuía grandes ‘rivais’ na arte, sendo ate onde pesquisei, o Bothwell Browne como o maior rival a altura no teatro (e ate cinema pois tanto ele quanto Browne apareceram em filmes, no caso, de Browne em ‘Yankee Doodle in Berlin’ e 1919 e Eltinge no ‘The Isle of Love’ filmado em 1918 e relançado duas vezes em 1920 e 1922). Fora os dois eu acho que mais cinco contemporâneos merecem citação: Karyl Norman, Bert Savoy, Jean Malin e Francis Renault tambem no Vaudeville alem de Barbette, que era trapesista.

O periodo entre os anos 30 e os anos 40, nos Estados Unidos, relegou o female impersonator ao undergraund, embora nos anos 50 os frutos para a construção de uma ‘cultura’ por assim dizer, começaram a surgir lugares para que as female impersonator se apresentassem acompanhadas de uma banda, ou ficarem circulando la dentro e entretendo os convidados. Dois exemplos classicos de lugares assim eram o ‘My-O- My em Nova Orleans’ e o ‘Finocchio’s’ em São Francisco.

Esses tipos de lugares não eram frequentados por gays apenas, eram frequentados por celebridades, artistas, atores e atrizes de Holywood da época e de quem mais pudesse apreciar essa arte, entre a lista de frequencias no My-O-My por exemplo encontramos Howard Hughes (Magnata da aviação e produtor de filmes), Carmem Miranda (Dispensa apresentações), Alec Guiness (Ator francês), Frank Costello (Chefe da Mafia italalo americana da época), etc.

Vale diferenciar da Casa Susanna, pois no caso dela, realmente era algo retirado e escondido, no caso das casas que citei, como o transformismo era voltado para exibições artísticas e mais bem aceito, de certa forma.

Na minha modesta opinião a maior female impersonator, das muitas que surgiram nesse conceito pós 2ª Guerra, foi a Lavern Cummings, a qual atuou de 1950 a 1983, sendo a partir de 1956 continuamente no Finocchio’s.

Ela era beleza notável, com uma voz de soprano, era de uma classe própria. Tambem se apresentou com o Jewel Box Revue , uma trupe itinerante de imitadores femininos, ao longo dos anos 50. Cummings desenvolveu o que é conhecido como uma “voz dividida”. Ela tinha a habilidade de cantar tanto notas altas quanto baixas.

Um fato peculiar é que ao longo da decáda de 50 e meados de 60 ele não usava a peruca, mas sim seu cavelo loiro natural comprido, clausula de contrato alias protagonista de um episódio peculiar. Eram comum desde os anos 30 as batidas policiais em locais de undergraund, e a prisão de pessoas acusadas de travestismo, e ao mesmo tempo em que o female impersonator, encarado a cpntragosto das autoridades conservadoras, como performance artistica. Ou seja, podia se montar para o palco mas não para sair na rua.

No caso do Lavern Cumming, ele fora preso numa dessas batidas, e seus colegas e empresários tiveram que compararecer a uma delegacia, com um terno, e apresentar explicar que seu longo cabelo loiro era uma clausula contratual. Para se ter uma ideia, nessa época em alguns lugares um homem poderia ser ate preso se deixasse seu cabelo sem corte ameaçar cobrir a parte de cima da orelha.

Ele se foi perto de completar 91 anos, em 2018, ficando da ‘Era de ouro Finoccho’s’ remanescente o David de Alba, amigos desde 1969, fã assumido e divulgador de Cummings para as novas gerações alem de ser curador de seu espólio.

Aqui no Brasil os maiores expoentes da arte do transformismo, que se transformou na arte das drag queens, foram a Madame Satã e a Ivaná, criada pelo ator Ivan Monteiro Damião.

Vale a pena depois você dar uma levantada com a Regine sobrea história da Boate Batom Vermelho do Rio, onde aconteciam espetaculos de transformismos, alias a Regine é parte da história visto que já se apresentou lá! rsrsrs

Enfim, foi um artigo maravilhoso que você escreveu Samantha!