quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Quando trans não significa exatamente transgênero

O texto a seguir é do James Finn, um homem homossexual, relatando sobre a experiencia que ele teve com o amigo travesti David (ou Carla) durante os anos 90. Lembro bem que naquela época ninguém falava sobre vivências trans ou algo do gênero, então achei interessante a maneira como ele descreve sobre a amiga travesti e sobre o passeio en femme que ele fez durante um Halloween naquela época.

Alaska vestida de Mae West no programa RuPaul’s Drag Race

Traduzido de James Finn

Minha amiga Carla era uma travesti dominadora profissional de 70 anos.

Ela se autodenominava como sendo travesti.

Ele era David durante o dia, um contador aposentado e bem-educado de Connecticut que preferia as roupas discretas da Brooks Brothers (antiga fabricante americana de roupas masculinas), as belas-artes e as visitas aos netos.

À noite, ela era feroz usando meia arrastão preta, roupas de couro e salto agulha de 15 centímetros. Ela tinha uma clientela dedicada, então suponho que ela era muito boa no que fazia.

Sentei-me silenciosamente no jardim do Centro Comunitário LGBTQ de Manhattan ao lado do David por muitas tardes. Ele compartilhou um bom pedaço da história dele comigo. Como ele sempre se sentiu atraído por se travestir, como se envergonhou disso em sua infância depois de ser descoberto. E, sobretudo, como ele desistiu disso para poder criar a sua família, o que era mais importante para ele.

Quando se aposentou, ele se mudou para Manhattan e viveu a vida que sempre sonhou. David ficou muito feliz quando me conheceu. Ele me disse que estava mais contente do que nunca.

David não era transgênero

Ele não se sentia como uma mulher. Ele não era uma mulher. No entanto, ele tinha um enorme prazer e satisfação ao se transformar em Carla. Particularmente eu não pretendo tentar entender isso. Tudo o que sei é que David era um bom homem e um bom amigo.

Não é tudo o que eu preciso saber?

Uma vez ele me ajudou a entender

Ele transformou uma versão muito mais jovem de mim na voluptuosa atriz Mae West com um chicote na mão. Imagine o Halloween, em meados da década de 1990, em Greenwich Village. Senhor, podíamos fazer O Halloween.

Acho que foi a Carla quem me convenceu. Ou pode ter sido originalmente ideia do meu marido Lenny.

Seja lá quem tenha pensado nisso primeiro, o que importa é que eu passei todo o dia de Halloween com a Carla (como David) me vestindo, maquiando, assistindo a filmes de Mae West e aprendendo a andar de salto agulha.

Hoje, eu que sou um ex-oficial militar com atuação tradicionalmente muito masculina, prefiro meu cabelo curto no estilo militar e sou meio grosso.

Naquela noite eu usei uma incrível peruca loira. Eu balancei os meus quadris. Eu exagerei a feminilidade em uma caricatura.

Carla ficou encantada por mim

Ela era minha amiga há muito tempo e eu a conhecia bem o suficiente para saber que ela tinha a necessidade de se travestir. Isso era extremamente importante para ela.

Os pronomes me atrapalhavam um pouco. Sempre pensei em Carla como ela. Sempre pensei em David como ele. A mesma pessoa. Duas identidades de gênero.

No entanto, ela era um homem, não uma mulher.

Em todo caso, eu não precisava entender nada disso. Eu só queria me divertir no Halloween. Eu queria usar um vestido vermelho justo com lantejoulas e ter uma farra percorrendo todos os meus lugares habituais.

E eu fiz. Com o maldito chicote da Carla nas mãos.

De maneira geral eu consegui o que eu queria. Lenny se vestiu como o ator Cary Grant usando um terno brilhante que ele pegou emprestado de uma companhia de teatro. Caminhamos de braços dados pela Bleecker Street e pela Christopher Street, parando em todos os bares gays. Nossos amigos normalmente nem nos reconheciam de início.

Cary Grant e Mae West em Uma Loira Para Três (She Done Him Wrong, 1932)

Então isso foi divertido.

Bebemos, cantamos, dançamos – ou cambaleamos no meu caso.

Mas conforme a noite avançava e as pessoas ficavam mais bêbadas, os suburbanos inundavam a Vila para ver o show, então as ruas ficaram lotadas...

E as coisas ficaram um pouco feias

Como homem, nunca me acostumei a ter meu espaço físico violado. Eu não tolero isso. Porém, não sei dizer quantas vezes a minha bunda foi beliscada naquela noite ou o meu enchimento de peito foi apalpado. Eu não saberia te dizer quantos caras se sentiram à vontade para me abusar ou apenas para tomar liberdade com o quão perto eles chegaram de mim.

Eu usei o chicote da Carla uma vez. Só uma vez.

Não me entenda mal. Tivemos uma ótimo noite. Ficamos fora até quase quatro horas da manhã.

Mas aprendi muito mais naquela noite do que apenas como festejar. Aprendi que as pessoas que mexem com papéis de gênero acabam sendo vistas como sexualmente suspeitas. E eu experimentei pessoalmente que isso pode levar a um desrespeito sombrio e até mesmo a um confronto físico.

Isso me intriga.

Não sei por que usar uma fantasia fabulosa de Halloween leva às pessoas a acreditar que sou inferior o suficiente para ser visto como uma presa.

Não sei por que um crossdresser deveria ser um alvo fácil para um valentão.

E eu nem consigo imaginar as besteiras que as pessoas transgênero suportam diariamente.

Suponho que seja meio que como ser um bode expiatório.

Suponho que é tudo sobre ser o outro.

Existe um pedaço escuro na natureza humana, um lugar instintivo que ecoa na névoa de nossas origens antigas como um bandos de primatas errantes.

Proteja nosso território. Cuidado com os estranhos. Mate o outro.

Esses impulsos são queimados de forma indelével em nossos circuitos neurais, embora a cultura os amorteça e subjuga enquanto nos esforçamos para transcender nossas origens e nossa biologia.

Eles ainda se manifestam, no entanto

  • Racismo
  • Homofobia
  • Transfobia
  • Misoginia / Sexismo
  • Xenofobia

Aprendi um pouco sobre tudo isso na noite em que saí pela cidade vestido como Mae West.

Algo que eu nunca me esquecerei.

James Finn, autor do texto
1 Comentário(s)
Comentário(s)

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o relato..
Me identifiquei..gosto da minha vida social como H , nao sofro com isso..mas gosto dessa transformação ocasional...da ate mais tesão esse intervalo..
vou escrever sobre no meu blog
gratidao pelo post ;)