segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Duas almas: Transgêneros nativos norte-americanos

Falei a respeito da tradição indiana das Hijras no ultimo post relacionado a história, dessa vez encontrei muita informação interessante a respeito do entendimento dos povos nativos da América do Norte quanto a questão do gênero na sociedade deles.

A crença, de maneira generalizada, do povo nativo americano está relacionada a alma da pessoa. Por exemplo, a tribo Siouan acredita que antes de uma criança nascer a sua alma fica diante do Criador que oferece em uma mão o arco e flechas, que indica um papel masculino na sociedade, e em outra mão uma cesta, que determina o papel feminino. Algumas vezes, quando a alma decide por um gênero o Criador troca a mão, em outros casos a pessoa pode ter duas almas, e o comportamento durante a vida é tido como sempre como natural.

Como tem registro de mais de 30 tribos na região com cultura e língua própria, havia uma necessidade de um termo universal que a população em geral pudesse entender, desta forma a comunidade LGBT Nativa Americana adotou o termo "Two Spirit" (tradução: espírito duplo ou com dois espíritos) em 1989 da língua Ojibwe dos nativos da região Manitoba-Winnipeg como um termo guarda-chuvas para os transgêneros e gêneros não binários. Nessa época a comunidade LGBT geral já estava ativa e tinha os seus próprios termos, porém as tribos não concordavam com uma classificação que leva em consideração principalmente a sexualidade (L, G e B da sigla tratam exclusivamente de sexualidade).

Como referência, segue alguns termos utilizados por outras tribos:
- Navajo usam Nádleehí que significa aquele que é transformado;
- Lakota usam Winkté que significa homem que tem compulsão por se comportar como uma fêmea;
- Ojibwe usam Niizh Manidoowag que significa pessoa com dois espíritos;
- Cheyenne usam Hemaneh que significa metade homem e metade mulher.

Na tradição dos nativos americanos, as questões de moral não eram relacionadas de maneira alguma com a sexualidade de uma pessoa, ela é julgada apenas pelo seu caráter e pela contribuição à tribo. Também era costume, em algumas tribos, os pais não forçarem nenhum padrão de gênero durante a criação, por exemplo, as crianças usavam roupas de gênero neutro até chegarem a uma idade em que elas poderiam decidir por si só qual o caminho trilhariam e qual cerimônias seria mais adequada para ela.

Outro detalhe interessante é que os Two Spirit eram altamente reverenciado e as suas famílias consideradas de sorte. Eles acreditavam que poder ver o mundo aos olhos de ambos os gêneros era um dom dado pelo Criador. Sendo assim, era comum os Two Spirit terem cargos de grande respeito dentro da tribo como curandeiros, shamans, visionários, místicos, conjuradores, guardiões das tradições orais da tribo, responsáveis por nomear crianças e adultos, enfermeiros durante as guerras, cozinheiros, casamenteiros, conselheiros matrimoniais, joalheiros, ceramistas, tecelões, cantores, artistas além de cuidaram de crianças órfãs e idosos. Isso também vale para Two Spirit que nasceu com corpo do sexo feminino, esses tinham cargos como caçadores ou guerreiros, dedicados aos papeis masculinos de maneira tão destemida quanto os outros. Dentro dessa cultura era considerado altamente ofensivo forçar um Two Spirit a cumprir o papel tradicional do seu sexo biológico.

Não é a toa que alcançam bons cargos na tribo pois os Two Spirit possuem um intelecto diferenciado, além de habilidades artísticas afiadas e uma capacidade excepcional para compaixão. Pode parecer que estou puxando a sardinha para o meu lado, mas a possível explicação dada para isso é o fato dessas pessoas conviverem com o autoquestionamento.

A seguir apresento a história de alguns Two Spirit:
Squaw Jim, à esquerda, e sua esposa.

Squaw Jim nasceu um homem biológico com duas almas e está vestido com roupas femininas nessa foto.

Ele serviu como batedor em Fort Keogh e ganhou reputação por bravura após salvar a vida de um companheiro de tribo na Batalha do Rosebud em 17 de junho de 1876.
We'wha talvez seja um dos mais famosos Two Spirits.

Nasceu homem biológico com alma feminina.

Todos a descreviam como uma pessoa muito inteligente, tanto que se tornou embaixadora da tribo Zuni em Washington. A elite americana a denominava "The Zuni man-woman" (A homem-mulher da tribo Zuni).
Osh-Tisch da tribo Crow.

Nasceu mulher biológica com alma masculina. Foi permitido a tomar os papéis femininos e masculinos na sociedade e era conhecido por obter excelência em ambos.

Sua habilidade de costura lhe valeu o direito de fazer a pele de búfalo usada pelo chefe da tribo, além disso também era conhecido por sua ferocidade nas batalhas. Inclusive, a sua força como um guerreiro lhe rendeu o nome Osch-Tisch que significa "Encontre-os e Mate-os".


Pena que nem tudo são flores e a história se repetiu como no caso das Hijras na Índia.

O primeiro contato com os povos nativos foi um choque para a cultura dos europeus. Quando Cristóvão Colombo encontrou os Two Spirit pera primeira vez, ele e sua equipe fizeram questão de jogá-los em buracos com seus cães de guerra. O tratamento desumano oferecido pelos cristãos foi apenas o começo do holocausto nativo americano.

Existem relatos das primeiras expedições dos jesuítas e dos exploradores franceses contando histórias a respeito de homens nativos que tinham "se entregue ao pecado" e de mulheres caçadoras. Em 1530, o explorador espanhol Cabeza de Vaca escreveu em seu diário sobre homens "molengas" que se vestem como as mulheres em tribos da Florida. Por conta do preconceito europeu contra os povos nativos, os monges católicos espanhóis destruíram a maioria dos registros dos astecas para erradicar as crenças e história dos nativos, incluindo registros sobre tradição dos Two Spirit

George Carlin, Dance to the berdache (Dança aos two spirit)
O pintor chegou a comentar que a tradição dos Two Spirit nas tribos
"deve ser extinta antes que possa ser mais plenamente registrada"
Obs: Berdache é um termo pejorativo para se referir aos Two Spirit.
Durante o período de colonização, os europeus exigiram que todas as pessoas atuassem em conformidade com os seus dois papéis de gênero prescritos, então era comum os Two Spirit serem forçados, por funcionários do governo ou representantes cristãos, a assimilar esse papel. Aqueles que sentiram que não poderiam fazer essa transição passaram viver na clandestinidade ou cometeram suicídio. Outro detalhe, também aconteceu a imposição de leis de casamento euro-americana invalidando os casamentos do mesmo sexo que antes eram comuns entre as tribos da América do Norte.

Estranho como o suposto mundo civilizado não tem nada de civilizado e os costumes tribais, a princípio estranhos, são bem coerentes. Triste lembrar que a nossa cultura está impregnada com esses pensamentos retrógrados.

Para finalizar, segue um texto do Russell Means, um integrante da tribo Lakota que foi ator no filme O Último dos Moicanos (1992) e foi um ativista dos direitos dos nativos americanos.

"Na minha cultura temos pessoas que se vestem metade homem, metade mulher. Winkte, nós os chamamos em nossa língua. Se você é um Winkte, saiba que é um termo honroso e que você é um ser humano especial, e entre o meu povo e todas as pessoas da Plains (agrupamento de várias tribos) consideramos você um professor para as nossas crianças e estamos orgulhosos do que e de quem você é"

Fontes: IndianCountry e QueerHistory
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Um comentário:

Joaquim Castrillon disse...

Gostei muitíssimo do artigo Samantha. Compartilhhei na hora. Eu vejo o quanto os nativos tratavam com naturalidade o homem feminino, que tinha seus valores e funcões reconhecidos. É este o caminho por onde devemos trilhar. Agora falando de maneira mais subjetiva e pessoal, quanta digndade dá pra ver nos rostos retratados. Parabéns