Adaptado de Medium e Queer in History
Dando sequência a essa série de posts que mostram que experiências transgênero existe há muito tempo na história da humanidade – como no caso das Hijras na India, Taikomochis no Japão e Duas almas nos povos nativo americanos – trago agora um pouco da história transgênero que aconteceu no reino de Ndongo e Matamba (atual Angola).
Nzinga, Governante do Reino de Ndongo e Matamba
Era uma vez, no Reino de Ndongo e Matamba (hoje localizado em Angola), uma monarca reinante chamada Mwene Nzinga Mbandi (1583-1663). Uma bela guerreira que meio que mudou de gênero, atribuindo-se a si mesma a responsabilidade de fazer coisas "masculinas", usar trajes masculinos e até mesmo assumir algumas esposas.
Seu pai governava a região e tinha o título de "Ngola" (daí a origem do nome atual do país: Angola), e foi sucedido nessa posição pelo seu irmão, Ngola Mbande. Quando criança, ela foi favorecida por seu pai, que lhe deu a oportunidade de observá-lo de perto enquanto ele governava e até mesmo o acompanhou para guerras. Mais tarde, ela foi enviada por seu irmão como emissária ao governador português em uma conferência de paz, em Luanda em 1622, com o objetivo de que os portugueses retirassem uma fortaleza que haviam construído em terras Mbundu, e que devolvessem alguns dos súditos de seu irmão que haviam sido capturados e pusessem fim aos saques de bandos de portugueses.
Ela conseguiu um tratado de paz – que os portugueses não cumpriram. Mais tarde seu irmão cometeu suicídio, deixando seu filho Caza como herdeiro com Nzinga atuando como regente. No entanto, ela o assassinou e assumiu o trono. Como governante, ela continuou a resistir contra a ocupação europeia e a escravidão de seu povo em inúmeras batalhas, liderando pessoalmente seu exército na guerra e formando alianças tanto com os povos africanos vizinhos do Congo, no interior da África, quanto com os holandeses na costa. Ela manteve essa resistência por mais de trinta anos, até bem depois dos seus sessenta anos, antes de finalmente assinar um novo tratado de paz com os portugueses em 1657.
O interesse trans em Nzinga reside em sua assunção ao trono de seu povo, que tradicionalmente só poderia ser ocupado por homens. Como ela ocupava uma posição absolutamente restrita aos homens, era necessariamente considerada como uma figura masculina. Então como rei, tornou-se importante que ela assumisse a posição de homem (fazendo uma espécie de transição de gênero) e adquirisse um harém de esposas. Como Nzinga era biologicamente feminina, suas esposas precisavam ser biologicamente masculinas, mas que se vestissem como mulheres e assumissem papéis de gênero femininos. Essas esposas faziam parte de um terceiro gênero conhecido como "Chibados". A Rainha Nzinga tinha cerca de cinquenta "Chibados" em sua corte real.
O que são os Chibados?
Os "Chibados" são pessoas do terceiro gênero que existiam no Reino de Ndongo e Matamba. Elas nasceram com corpos "masculino", mas viviam como mulheres. Na prática, eram mulheres transgênero que eram tratadas com muito respeito.
A palavra "Chibados", no singular "Chibado", é uma palavra portuguesa. Padres e jesuítas portugueses observaram esses povos e cunharam a palavra. Documentados pela primeira vez por padres católicos, os Chibados (ou Quimbandas) eram profetas que viviam principalmente como mulheres. Vestiam-se como mulheres e acreditava-se que possuíam superpoderes e intuição mágica, e em alguns casos agiam como mulheres.
Elas também falavam de forma efeminada e se casavam com outros homens, o que era visto como algo espiritualmente bom, "unindo-se em luxúria ilícita com eles". Aliás, não eram apenas os Chibados que eram considerados de terceiro gênero ou de gênero diferente na África. Havia os "mudoko dako", ou homens efeminados, entre os Langi, do norte de Uganda, e os "gor-digen", do Senegal, para citar alguns.
O que isso nos diz?
Isso nos diz que na cultura local não existia uma regra binária antes dos portugueses colonizarem a região. Mudar de gênero era algo normal naquela sociedade. O que é comprovado não apenas pela documentação daqueles considerados nativos de terceiro gênero, mas também pelas línguas nativas, que normalmente não são de gênero. Tanto que pessoas transgênero eram tratadas com o máximo respeito em alguns países e comunidades africanas, e ainda o são hoje.
Isso também nos diz que a poligamia era normalizada. Em muitas sociedades africanas pré-coloniais, a poligamia era um ato normal. Hoje, algumas tribos e até mesmo sociedades africanas urbanas ainda mantêm tradições poligâmicas. No entanto, como a colonização implementou muita misoginia e valores tradicionalistas europeus, hoje algumas relações poligâmicas favorecem os homens em detrimento das mulheres e podem resultar na diminuição dos direitos das mulheres. Isso não quer dizer que a poligamia deva ser proibida. Existem muitas relações monogâmicas em que a mulher é abusada. Mas essa é a razão pela qual alguns países, como Burkina Faso, acabaram proibindo a poligamia, pois ela estava intimamente relacionada a abusos sistêmicos contra as mulheres. A poligamia também foi proibida na Somália quando o país adotou um governo marxista-leninista.
Isso não quer dizer que NÃO houvesse misoginia ou sexismo antes da colonização. Como mencionei anteriormente, alguns dos rivais de Nzinga questionavam a legitimidade de uma mulher em uma posição de poder muito alta. Mas a natureza das relações poligâmicas antes da colonização NÃO era sistematicamente utilizada para abusar das mulheres.
A poligamia também pode se manifestar de diferentes maneiras. A forma mais comum de poligamia é a poliginia – quando um homem tem duas ou mais esposas. Nesse caso, o relacionamento de Nzinga com os Chibados pode ser visto como a forma mais próxima de poliginia, já que Nzinga era considerado um "homem" e as Chibados eram consideradas "mulheres". Na terminologia africana, Nzinga é conhecido como "mulher-marido", o que era muito comum antes da colonização e ainda é comum em algumas sociedades no continente africano. Há um bom livro sobre isso, "Male-Daughters, Female-Wives" ( Filhas homens, maridos mulheres – sem edição em português), da autora Ifi Amadiume, publicado em 1987, que toma como exemplo a sociedade Igbo.
As tentativas dos portugueses de vencer a luta pelo colonialismo fracassaram, pois Nzinga liderou uma forte resistência anticolonial contra eles. Essa luta continuou por trinta anos, chegando aos sessenta, até que a rainha Nzinga finalmente assinou um tratado de paz em 1657. Logo depois, os portugueses colonizaram o que hoje é chamado de Angola e implementaram leis coloniais que incitavam o preconceito à pessoas LGBT. Eles falharam em garantir o acordo do tratado de paz e traíram o reino.
No contexto africano, sua história não é tão extraordinária quanto pode parecer. Relatórios etnográficos de todas as regiões do continente mostraram que os papéis de gênero eram tradicionalmente menos identificados com o sexo biológico do que no Ocidente, de modo que mulheres ricas que podiam pagar podiam ter esposas e assumir os papéis de "maridos" – enquanto alguns homens ricos incluíam ocasionalmente um homem entre suas "esposas".
Leitura adicional:
- Das Wilhelm, Amara (2008). Tritiya-Prakriti: People of the Third Sex. GALVA.
-Sweet, James H. (2003). Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441–1770. University of North Carolina Press.
-Africa and its queer history: I am not less African / Exposure