quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O que acontece quando os papéis de gênero são forçados às crianças?

Traduzido de Emanuella Grinberg (CNN)

A maioria das aulas de educação sexual começa no ensino médio, mas um novo estudo (2017) sugere que, independentemente do local onde as crianças vivam, o verdadeiro debate sobre relacionamentos, identidade e sexualidade deve começar ainda mais cedo para minimizar os impactos negativos dos papéis de gênero.

Você provavelmente já ouviu isso antes: mais do que a biologia, a família, os amigos e a sociedade influenciam as impressões sobre o que significa ser menino ou menina, colocando rígidas expectativas de gênero nas crianças desde o berço. Nos últimos anos, um crescente grupo de pesquisa tem-se centrado nos desequilíbrios na saúde que surgem da aplicação de normas de gênero nas crianças.

O estudo, publicado no Journal of Adolescent Health (Jornal de Saúde do Adolescente), contribui com uma perspectiva global para esta questão. A principal conclusão: quer a criança esteja em Baltimore, Pequim ou Nova Deli, o início da adolescência desencadeia um conjunto comum de expectativas de gênero rigidamente aplicadas, associadas a riscos crescentes de problemas de saúde física e mental ao longo da vida.

Pesquisadores da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg e da Organização Mundial de Saúde colaboraram num estudo global sobre pré-adolescentes para identificar temas universais no desenvolvimento da identidade de gênero em todos os países e níveis de rendimento.

“Os riscos para a saúde dos adolescentes são moldados por comportamentos enraizados nos papéis de gênero que podem estar bem estabelecidos nas crianças de 10 ou 11 anos de idade”, disse Kristin Mmari, professora associada da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg e principal pesquisadora da análise qualitativa do estudo global sobre pré-adolescentes . “No entanto, vemos bilhões de dólares sendo investidos em todo o mundo em programas de saúde para adolescentes que só entram em vigor aos 15 anos e, nessa altura, provavelmente será tarde demais para fazer uma grande diferença.”

Para as meninas, esses riscos podem incluir casamento infantil, gravidez, abandono escolar precoce, infecções com doenças sexualmente transmissíveis e exposição à violência. Os meninos também sofrem de um risco aumentado de abuso de substâncias nocivas, suicídio e de uma esperança de vida mais curta do que as meninas – especialmente se eles tentarem desafiar as normas de gênero masculinas.

As descobertas aparecem na revista como uma série de artigos baseados em entrevistas em 15 países com 450 adolescentes e seus pais ou responsáveis, totalizando quase 900 pessoas. As experiências descritas foram diferentes, mas os temas se repetiram em todos os continentes.

As meninas são vulneráveis e os meninos são fortes

O estudo chama isso de mito hegemônico: a percepção de que os homens são o sexo dominante, forte e independente, enquanto as mulheres precisam ser protegidas.

Esta ideia começa na primeira infância, reforçada pelas escolas, pais e meios de comunicação. Entrevistas com crianças e seus tutores revelaram que o início da puberdade desencadeia um reforço crescente da pressão para se conformarem com identidades e papéis hegemônicos de tipo sexual.

Enquanto os meninos e os homens descreveram ter a liberdade de ir e vir quando quisessem para buscar educação e outras oportunidades, as moças tiveram a sua mobilidade e acesso à educação restringidos, observa o estudo. À medida que entram na adolescência, o silêncio e a modéstia são incutidos como valores desejáveis, à medida que as meninas são pressionadas a comportar-se de um modo “modesto”.

Este fenômeno leva a inúmeras percepções culturais em cascata.

Quando a puberdade chega, tudo se resume a (prevenir) sexo

A puberdade aprofunda a divisão de gêneros, especialmente no que diz respeito à sexualidade, transformando os rapazes em predadores e as moças em alvos potenciais, concluiu o estudo.

Mensagens como “não se sente assim”, “não use isso” e “os rapazes vão arruinar o seu futuro” reforçam a divisão de poder entre gêneros e promovem a segregação sexual com o objetivo de preservar a sexualidade das moças, diz o estudo. “Em alguns lugares, as meninas internalizam essas normas ainda mais do que os meninos.”

Em Deli, na Índia, quando uma menina atinge a puberdade, “sua família se preocupa em proteger sua castidade, evitando a sua fuga e teme que o estigma quebre a honra familiar”, disseram os pesquisadores. As meninas não devem olhar ou falar com os meninos, “pois isso poderia levantar suspeitas de que eles estavam iniciando relacionamentos românticos”.

Os pesquisadores também descobriram que, apesar dos esforços para normalizar a menstruação e o desenvolvimento dos seios, as atitudes negativas da sociedade contribuem ainda mais para o sentimento de auto-objetificação das meninas, para a vergonha corporal e para a falta de poder na tomada de decisões sexuais.

“O início da menstruação parece constituir uma grande preocupação para os pais, uma vez que associam a puberdade ao potencial para compromissos românticos e sexuais precoces e ao subsequente risco de gravidez na adolescência”, afirmou o estudo.

"Cubra o seu corpo e não saia de casa"

Como consequência das percepções dos adultos sobre a vulnerabilidade sexual das meninas, os entrevistados em quase todos os locais relataram que a mobilidade das meninas é muito mais restrita do que a dos meninos.

Em Ghent, na Bélgica, os entrevistados falaram de como as meninas tinham de ter cuidado na escolha das suas roupas ou corriam o risco de serem vistas como “fáceis demais” ou “prostitutas”, tornando-as potenciais vítimas de violência.

Uma criança de 11 anos de Deli expressou um sentimento semelhante: “Os pais também dizem às meninas para não saírem sozinhas. Ela não terá permissão nem para trabalhar. Eu realmente não entendo por que as meninas não podem sair de casa.”

Uma jovem de Nairóbi, no Quênia, descreveu não poder sair à noite porque já tinha seios crescidos.

O receio dos pais relativamente à segurança e ao estatuto familiar das meninas é uma razão comum para restringir os movimentos delas, especialmente no Oriente Médio e entre alguns grupos de imigrantes na Europa Ocidental. Mas tais preocupações parecem menores em comparação com as potenciais consequências.

“Esta mobilidade espacial restrita das meninas está ligada a conhecimento e poder limitados e pode ter profundas implicações para a saúde delas, sob a forma de maior susceptibilidade à violência sexual e acesso deficiente a serviços de saúde reprodutiva, além da perda de prestígio, especialmente entre as famílias pobres”, disse o estudo.

Meninos são problemáticos

Apesar da liberdade e dos benefícios que lhes são conferidos, os rapazes ainda são vistos como um perigo para as moças devido à vulnerabilidade delas – um preconceito com impactos negativos para ambos os gêneros, disseram os pesquisadores.

Em Deli (Índia) e Xangai (China), as moças disseram que eram desencorajadas de interagir com rapazes, de se tornarem amigas deles ou de estabelecerem relações românticas.

“Não faço amizade com meninos, pois meus pais me pediram para não fazer”, disse uma menina de 12 anos de Deli.

“Talvez eu faça amizade com uma garota e alguém me veja e conte ao pai dela, e os problemas aparecem”, disse um menino de Assiut, no Egito.

A não-conformidade de gênero tem consequências

Um tema recorrente nas conversas com adolescentes e adultos foram aqueles que desafiaram as expectativas de gênero, resultando em “sanções e pressões significativas para se conformarem”, afirmou o estudo.

O estudo concentra-se em três manifestações comuns de desafio: meninos usando esmalte, meninas jogando futebol e roupas “inapropriadas” de gênero.

Para as crianças pequenas, pode começar sendo aceitável ultrapassar as fronteiras de gênero. Mas quando se torna claro que um comportamento é socialmente definido como típico do outro sexo, “ele é evitado por medo de ser condenado ao ostracismo”, afirma o estudo.

Embora os rapazes também resistam às normas típicas masculinas, os pesquisadores descobriram uma maior vontade entre as moças para desafiar os estereótipos de gênero, tanto que uma menina moleca é muito mais aceitável na sociedade do que um menino afeminado, que enfrentam significativamente mais estigma e rejeição, segundo o estudo.

“Uma explicação potencial para isto pode ser que as meninas que ‘agem como rapazes’ apresentam características masculinas associadas ao poder e ao domínio”, supuseram os pesquisadores.

Por outro lado, “os meninos que ‘agem como meninas’ geralmente não recebem a mesma aceitação social devido ao menor poder ou prestígio associado aos traços e comportamentos de feminilidade”.

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Para mim esse tipo de estudo deixa claro que realmente existe uma "Ideologia de Gênero", mas que, ao invés do que a mídia conservadora vende, essa ideologia força comportamentos pré-definidos nas pessoas enquanto ignora a vasta complexidade psicossocial da nossa existência.

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